Tick-tack.
Tick-tack. O relógio antigo na parede gritava. O barulho, apesar de
ainda alto, já havia sido mais incômodo, agora era apenas como uma
música, quase inaudível, no fundo de um espetáculo. Enrolei-me
mais em meu cobertor e me aconcheguei ao sofá. Tomei um gole do meu
café e continuei ouvindo o crepitar do fogo na lareira.
Essa é
uma casa pacata, bem diferente das outras que eu servi. Ser babá não
era um trabalho considerado lucrativo ou prestigioso na sociedade,
mas eu precisava do dinheiro e conhecer alguns pais desesperados era
divertido na maioria das vezes. Olhei para o andar de cima, Rebecca
já havia ido dormir a umas duas horas e daqui a pouco daria meia
noite. E eu teria que passar a noite aqui, no sofá, com um cobertor
e uma xícara de café me protegendo da tempestade do lado de fora.
Meus
pensamentos foram interrompidos com o bater da porta. O vento devia
ter abrido a porta ou a janela da cozinha. Levantei ainda com meu
cobertor por meu corpo e fui até a cozinha. Estava muito escuro, mas
não procurei pelo interruptor, não havia necessidade. Se a janela
estivesse aberta eu conseguiria enxergar.
Meus
cabelos negros atrapalhavam minha visão, mas não os afastei. Não
conseguia enxergar nada, talvez a janela tivesse fechado novamente.
Bufei e voltei para a sala. Antes de chegar ao sofá, o baque
ensurdecedor novamente. Irritada voltei à cozinha e procurei pelo
interruptor dessa vez, não o encontrei, mas não foi preciso. Um
relâmpago me mostrou que a janela de fato estava aberta. Meu
cobertor caiu de meu corpo perante o susto. Um rosto me encarava. Tão
perto que se estivesse vivo, eu poderia sentir sua respiração.
Choque.
Meu corpo tremia, não apenas de frio, mas de medo. Uma mulher, tão
pálida, tão acabada, tão... morta. Suas feições pareciam com as
minhas, mas eu não liguei para isso. Eu precisava sair do choque.
Ela não é real. Ela não é real. Lágrimas de medo brotaram em
meus olhos.
“Eu sou
real, Lilith.” As palavras não foram proferidas, mas eu podia
escuta-las. Elas foram projetadas em minha mente. A figura à minha
frente sorriu e foi quando eu finalmente caí na realidade. Gritei e
corri para a sala derrubando a mesa de centro e tudo o que havia no
caminho. Quando cheguei à porta, Rebecca apareceu na ponta da
escada. Rebecca. Eu havia esquecido ela.
-
Rebecca! Cuidado! Vamos, precisamos fugir. – gritei.
- Mas
ainda é cedo, Lilly. Vamos brincar. Temos companhia.
Olhei
para o lado e vi não apenas a figura que me encarou na cozinha, mas
milhões de fantasmas deformados: crianças, mulheres e homens. Todos
mortos. Todos levando algo que deixava claro como haviam ocorrido as
mortes. Uma garotinha com uma faca pendurada em seu estômago
aproximou-se de mim.
Não.
Não, não, não. Virei para a porta da frente e tentei abri-la.
Nada. Estava trancada.
“Não
precisa fugir, Lilith. Vai ser divertido.” Novamente a voz foi
projetada em minha mente.
- Por que
vocês sempre tentam fugir? Ninguém gosta de brincar comigo.
Virei-me
com cuidado e Rebecca estava na minha frente segurando uma faca. Seu
olhar era vago, como o de uma psicopata. Nada parecido com a
garotinha que eu havia encontrado no dia da entrevista, ou até mesmo
a garotinha de algumas horas atrás. Ela sorriu de uma forma
estranha. Olhei para os outros fantasmas. Eles demonstravam pena, mas
de certa forma estavam alegres, eu podia sentir a felicidade por
conseguirem mais um membro no seu clubinho.
-
Rebecca... por favor. – implorei por entre lágrimas.
- Ah! –
ela suspirou e sorriu como uma garotinha dessa vez. – então você
realmente quer brincar comigo!
- Não,
Rebecca, eu não... eu quero, eu preciso ir.
- Então
você não quer ficar comigo. – seus olhos pegavam fogo e por um
segundo achei que eu também estava queimando.
Pulei por
cima da garotinha e tentei roubar a faca. Fantasmas ao meu redor.
Eles gritavam e uma dor agonizante em meus ouvidos me fez cair no
chão gritando com o coro. Meu ouvido sangrava e Rebecca aproximou-se
com duas coisas fatais: raiva e uma faca afiada.
A última
coisa que senti foi uma dor em meu estômago. Sangue jorrava para
fora, minha mão tentou desesperadamente faze-lo parar de escorrer,
mas era inútil. Então minha última visão foi a de Rebecca se
ajoelhando ao meu lado tocando meu sangue com suas pequenas mãos e
em seguida saboreando. Seus pais estavam ao seu lado, mas não eram
reais. Eram fantasmas. E logo eu também seria uma.